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Sobre o ensino a distância e a crise do Coronavírus

"Vamos à escola, toda hora é hora. Vamos à escola, lá se aprende a viver" (Escolinha do Prof. Raimundo)

"As melhores coisas se aprendem na escola, mas não na sala de aula" (Capital Inicial)

Devido à crise gerada pela pandemia do novo Coronavírus, os governos estaduais, municipais e a rede privada de ensino assertivamente adotaram o cancelamento das aulas presenciais. Também de forma positiva, em caráter emergencial, tais redes começam a pensar em possibilidades para minimizar as perdas que certamente afetará o processo de aprendizagem dos estudantes com o cancelamento das aulas. Também devido a essa excepcionalidade, o Ministério da Educação lançou uma resolução que suspende a exigência legal de duzentos dias letivos, abrindo, assim, a possibilidade para que atividades realizadas de forma remota sejam contabilizadas como aulas em nossas escolas. Tal cenário nos leva a seguinte questão: em que medida o ensino a distância pode substituir as aulas presenciais sem prejudicar a aprendizagem dos alunos? 

Não é de hoje que a possibilidade da implementação do ensino a distância ronda a educação básica no Brasil. Estas propostas vão desde referências a adoção por parte de famílias nos Estados Unidos e outras partes do mundo do modelo de homeschooling - onde as crianças estudam em casa sob a supervisão de seus familiares com apoio de consultorias educacionais – até projetos de empresas de tecnologia que se colocam como solução para os problemas do setor educacional, que a tempos enfrenta graves problemas. A quase universalização do ensino básico no Brasil, não foi acompanhada pela qualidade do serviço prestado, fato evidenciado pelos pífios resultados apresentados pelas escolas públicas e também das escolas privadas em avaliações externas como PISA, que avalia e compara o grau de proficiência de estudantes em varias partes do Mundo.

Não é propósito desse artigo dar conta das possíveis soluções para os problemas da educação no Brasil, mas podemos apontar que essas partem necessariamente de maiores investimentos na educação e não de atalhos que apenas buscam reduzir custos e favorecer grupos de empresários do ramo da educação que sempre prometem o milagre de fazer melhor com menos. Isso não é apenas uma suposição, pois as escolas brasileiras melhor colocadas nas avaliações externas nacionais e internacionais, ao contrário do que o discurso anti-escola pública nos faz pensar, são instituições públicas como os CEFET, Institutos Federais e Colégios Militares de aplicação. Esses resultados não são justificados pelos simples fato de que essas instituições sejam federais ou geridas sob rigor da gestão militar, mas sim por dispor de mais recursos para investir em infraestrutura e pagar melhores salários aos seus professores que trabalham em regime de exclusividade, ou seja, esses profissionais não precisam trabalhar em duas ou três escolas. Estas instituições ainda investem de forma pesada na formação continuada de seus profissionais tendo em seus quadros vários mestres e doutores. O investimento médio por aluno nessas instituições (CEFET, Institutos Federais e Colégios Militares de aplicação) chega a ser quatro vezes maior do que o investido nas Escolas de Ensino Médio por estudantes da Rede Estadual de Ensino.

Como professor da rede estadual, sempre fico impressionado com o fato de que mesmo trabalhando com o básico do básico, conseguimos conquistar alguns bons resultados. Um exemplo que evidencia o pouco investimento nessas redes municipais e estaduais, é que a tecnologia, tão festejada pelo seu poder transformador no campo da educação, chegou nas mãos dos alunos das escolas públicas, assim é comum ver em nossas escolas estudantes com smatphones de última geração, mas essa tecnologia não está presente na sala de aula, onde ao invés de um projetor ou lousa digital, em muitas escolas ainda disponibilizam apenas quadro e giz, realidade que justifica a já célebre conclusão de que “temos escolas com infraestrutura do século XIX , com professores formados aos moldes do século XX e alunos do século XXI”.

Voltando a questão do ensino a distância, a apreensão de especialistas é que essa nova legislação feita de forma emergencial abra o caminho para que a educação básica passe a sofrer do mesmo mal que o ensino superior vem sofrendo nos últimos anos, com a precarização do ensino devido a uma desregulamentação que permitiu a proliferação de cursos a distância que apenas servem para certificar seus alunos com diplomas que na prática não qualificam de fato. Como já afirmei acima, acredito que aproximação do campo da educação com as novas tecnologias é imprescindível para melhoria da qualidade do ensino, mas nunca como substituto do convívio com professores e colegas na escola.

O processo educativo e de produção do saber, que é totalmente diferente do simples acesso a informação, passa necessariamente por interações humanas significativas, trocas de experiências, muitos erros e reflexões sobre esses erros. Essas interações percorrem caminhos que nem sempre podem ser mensurados por nossos currículos, muito menos por aulas gravadas e uma série de material descontextualizados que pouco dialogam com a realidade da comunidade em que vivem nossos estudantes. O que nos leva a concluir que qualquer tentativa de trocar a potência do aprender junto com o outro pela experiência virtual, é algo limitante. A conjuntura imposta pelo isolamento social, que em alguma medida poderá levar a adoção de experiências de ensino a distância na educação básica apontará, na prática, justamente para essa conclusão.

Os prejuízos que esses estudantes terão frente a privação do convívio com seus pares e a impossibilidade de uma interação direta com os seus professores, ou até mesmo, da sua própria presença física em um espaço de educação diferente de seu ambiente doméstico, nos fará perceber o que já é um consenso entre os pedagogos, sociólogos, psicólogos entre outros profissionais que trabalham diretamente com área da educação; somos seres sociais e nos humanizamos com a convivência direta e espontânea com o outro, condição esta que o ensino a distância não pode suprir.

Posso exemplificar tudo isso que disse acima com uma experiência pessoal. O lema da Universidade Federal de Minas Gerais onde estudei é a frase em latim “Incipt vita nova”, quando ingressei na instituição fiquei intrigado com o que aquela frase queria dizer e busquei o seu significado, que em uma tradução livre seria algo como o “início de uma vida nova”, mas naquele momento não tive a capacidade de entender a profundidade dessa frase, contudo agora, depois de vários anos de formado, entendo todo o sentido desse lema. A convivência naquele espaço promoveu profundas mudanças na identidade daquele jovem de Ribeirão das Neves, oriundo de classe popular, que trazia inúmeros auto preconceitos introjetados em sua identidade e que acreditou na possibilidade de ingressar nesse espaço apenas por incentivos de professores e colegas da escola pública. A experiência de conviver com pessoas de classe sociais e até países diferentes, diversidade de identidade de gênero, todas as conversas com os colegas nos corredores, as viagens para participar de seminários, os estágios, contato próximo com professores renomados e mais uma infinidade de eventos que não consigo enumerar e nem mensurar, tiveram tamanha importância, talvez até mesmo maior, do que os conhecimentos acadêmicos que adquiri durante a realização do curso.

A pergunta que me faço é: se eu tivesse feito um curso a distância, por maior que fosse a sua excelência, esse teria o mesmo impacto em minha formação? A resposta é obviamente negativa e para quem avalia que tudo que foi listado acima não seria importante, por que o que vale mesmo é o ingresso no mercado de trabalho, a teoria sociológica pode te dar uma boa resposta. Para além do capital intelectual, ligado a aquisição de conhecimento, o ensino presencial pode revestir os estudantes de outros capitais como o capital social, também chamado pelo mercado de ‘network’, e que durante o curso e após a sua conclusão pode decidir o futuro da carreira de um profissional. Pessoalmente até hoje, depois de dez anos de conclusão de curso, recebo propostas de trabalho via indicação de colegas de curso e professores dos tempos da minha graduação e fiz mestrado e estou cursando o doutorado sempre utilizando as redes de relacionamentos que criei durante a minha graduação.

Se a necessidade do contato com seus pares dentro de uma instituição de ensino formal se mostra tão importante para um jovem adulto de 20 anos, imagine quais seriam os impactos de privar esse contato na infância e na adolescência, período em que sua personalidade está sendo formada. Portanto, a exemplo do que evidenciou essa crise provocada pelo novo Coronavírus sobre a importância de investirmos em um sistema de saúde pública que proteja a nossa sociedade, também devemos defender e fortalecer o princípio de uma escola pública e de qualidade, frente os assédios de grupos empresariais que, como urubus a espreita, vão tentar aprofundar suas investidas contra os - já limitados - recursos destinados as escolas públicas, nesse período de tanta dificuldade.

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