Quando se aproximava o mês de agosto, em Ribeirão das Neves, a expectativa dos moradores era de como seria a “Festa de Agosto”. Quando ela acontecia, a sensação que se tinha era que aqueles dias que movimentavam a cidade não deveriam acabar, pois um ano demorava a passar e os acontecimentos que modificavam o cotidiano de uma Neves tão pacata, trazendo religiosidade e alegria, era tudo de bom.
Isso num passado não muito distante. A cidade era pequena e nada acontecia a não ser a tradicional Festa de Nossa Senhora das Neves. Tempo em que os católicos nevenses transbordavam de religiosidade e fé para celebrar a padroeira. A preparação tornara-se tradição, passando de geração a geração. Era o respeito da sociedade e do poder público à fé católica.
Durante a festa, a face da cidade e de sua gente ganhava fisionomia e dimensões que não eram só de um município que abrigava uma grande penitenciária. O importante era se contagiar da alegria e dos ares festivos que embelezam a cidade e as pessoas. Então, Neves se enchia de pura poesia, tudo refletia mais intensamente, o vento, o sol, as luzes, as cores e os olhares dos moradores. Além disso, a alegria de festejar Nossa Senhora das Neves, contagiava os moradores de municípios vizinhos, que, em romaria, vinham prestigiar as solenidades, enchendo a igreja, a praça, a avenida e ruas. E, surpreendentemente, aquele jeito tranquilo de viver nas ruas calmas e sem barulho, no dia 5 de agosto, mudava. E a grande novidade, eram os camelôs que faziam a alegria da criançada, além de um parque de diversão e um circo de tourada. O grande barato era curtir a festa o dia inteiro. E assim, Ribeirão das Neves se transformava em uma grande confraternização eucarística e social, num tempo em que o medo de assalto não existia, pois o ir e vir eram seguros e sem policiamento; as portas dormiam destrancadas!
Para mostrar a importância da festa, os moradores pintavam suas casas e, na família, todos ganhavam roupas novas para ir à missa. Tudo tão simples. O que importava era a fé, simbolizada no levantamento de Mastro de Nossa Senhora das Neves, que culminava com o show de fogos pirotécnicos, a missa solene e a procissão. A parte social acontecia na barraca em volta da igreja, onde as regras de convivência eram sempre respeitadas. O festeiro promovia um leilão, um baile e, sempre no dia 5, oferecia um almoço para os moradores.
Na década de 1980, a cidade ganha muitos novos moradores e tudo começa a mudar. A tradição religiosa vai mudando na sua essência. Mesmo ganhando o glamour do poder público, a Festa de Nossa Senhora das Neves vai se descaracterizando, Ribeirão das Neves ganha ares de cidade grande, misturando religiosidade e comércio. A inovação introduz shows de artistas famosos e numerosas barracas de alimentação e de bebidas, armadas na Rua Ari Teixeira da Costa. Cresce a participação dos bairros nos ritos religiosos. A festa continuava, ela só tinha sucumbido aos tempos modernos também impostos à cidade. Neste momento, a tradição permitiu eliminar o que não era mais sustentável e incorporou novas ações. A festa florescia em versões diferentes e era uma tradição ressurgente na sua forma. Ela tinha que se adequar ao tempo, a interferência dos meios de comunicação, ao consumo exibicionista e tudo mais que o poder político podia oferecer para também tirar proveito. Mas, em meio ao mundo em descontrole, a festa tinha apoio suficiente e a tradição da fé, sustentação.
Nos anos 90, a modernidade bate firme à porta da festa e as mudanças ocorrem também na igreja. Comissões litúrgicas e sociais dão novo tom às comemorações, substituindo a pessoa do festeiro. Mas, os moradores continuavam a esperar o dia da festa e participavam ainda com entusiamo das solenidades religiosas, mantendo a tradição maior do município. O baile de agosto ficava por conta de uma comissão social, que também promovia outros eventos em prol de Nossa Senhora das Neves.
Porém, nos últimos 9 anos, a insegurança das pessoas por causa da violência, a Festa de Agosto perdeu muito do brilho de outrora, dando-nos a sensação que a festa da padroeira cada vez mais seria só lembranças em fotografias. Outro agravante foi o pouco envolvimento do poder municipal com a tradição maior do município - vale lembrar que a história de Neves (incluindo a força da Festa de Nossa Padroeira), é maior que as facções político-religiosos que aqui venham e se estabeleçam.
É certo que Neves vive o fenômeno da mundialização e as estruturas da tradição foram se tornando cada vez mais complexas e novas faces foram por elas incorporadas, mas, ainda assim, faltou apoio do poder público para que as festas tradicionais do município se fortalecessem, adequando-se às situações e intempéries. Segundo pesquisador Fábio Braoios, a construção da tradição é fruto direto da capacidade humana de selecionar e acumular experiências positivas e ensiná-las aos seus semelhantes. Isso porque o homem,diante de outros animais, é capaz de criar uma identidade. Assim, a tradição é resultado das diversas ações individuais aceitas e reproduzidas pelo meio humano. Ainda segundo Fábio, o homem com uma imagem equivocada da tradição, nega-a como suporte para as suas contribuições. Porém, não se pode negar a herança da tradição. Ela mesma nos fornece munição para alvejarmos o que de errado verificamos no status quo. Por isso, é vital que o município invista em suas tradições e costumes. A renovação da tradição depende das gerações futuras, mas se não há investimento real, ela corre o risco de morrer, pois sem herança, o jovem perde o vínculo às suas tradições e raízes. Ribeirão das Neves é hoje uma cidade sem identidade, massificada e sem investimento de fato na cultura e na memória da cidade. O que se tem são poucas fotografias em preto e branco. Os espaços públicos não são de fato ocupados, pois a violência intimida os moradores, mas como lembra a música, o povo precisa de lazer e não só de comida. Vale lembrar que o município tem um batalhão de Polícia Militar que pode garantir a ordem e a segurança em todos os eventos, acostumando a população ao convívio sadio.
Vale lembrar ainda que as tradições são necessárias e persistirão sempre, porque dão continuidade e forma à vida. Isto através do ritual, do cerimonial e da repetição. A tradição tem um importante papel social, algo compreendido e posto em prática pela maioria das organizações, inclusive os governos. Assim pode-se vislumbrar a festa do Sírio de Nazaré, em Belém do Pará, a Festa de Nossa Senhora Aparecida, em Aparecida do Norte, a Festa do Senhor do Bonfim, em Salvador e tantas outras pelo Brasil a fora. Pode-se ainda apreciar os lugares tradicionais de Belo Horizonte como o arco do viaduto de Santa Tereza, a Rua da Bahia e suas histórias, o Café Nice, o acervo arquitetônico da Pampulha e a própria mineiridade, tão singular. Todas essas festas e lugares nos fazem refletir sobre a nossa “ festa de agosto”. Ela nos faz esquecer que não temos só penitenciárias, que geram dinheiro e poder para quem as constroem, mas, principalmente, que as tradições estão na alma do povo e, repetindo o que disse o poeta, em Ribeirão das Neves, vive um povo que merece mais respeito.
O certo é que a festa remete aos nevenses um passado de boas recordações para com a tradição à Nossa Senhora das Neves. O que nós faz ter também esperança . Quem sabe a chegada de uma nova administração municipal trará bons ventos e mais investimentos à memória e as tradições do município, pois um povo sem história é um povo sem identidade. Contudo, ainda há tempo de se resgatar o que ficou perdido, e esta empreitada tem de ser de todos nós cidadãos comprometidos em reinventar uma cidade infinitamente melhor para se viver.
Vale ressaltar ainda que a Praça Matriz de Nossa Senhora das Neves, outrora emblemática para os nevenses, hoje virou Praça Central, onde está tudo junto e misturando, comércio, cultos evangélicos e missas com portas fechadas. A culpa recai na modernidade, que permite misturar ritos eucarísticos com barulhos ensurdecedores, obrigando os fiéis fazerem da Praça Nossa Senhora das Neves, um espaço só de passagem. A inversão de valores nos mostra o que vale mais.