Se duas palavras podem resumir o Grito dos Excluídos em Ribeirão das Neves esse ano, essas palavra são repressão e revolta. Este indignado blogueiro - que há alguns meses se converteu num aprendiz de ativista social - acompanhou hoje a movimentação dos manifestantes do Grito desde o início e pôde constatar como nesse país nossa democracia ainda engatinha.
Concentrados em frente à Câmara Municipal de Ribeirão das Neves, manifestantes capitaneados pela Rede Nós Amamos Neves - entidade que congrega vários movimentos populares da cidade - gritavam palavras de ordem, entoavam cânticos e cantavam hinos que evocavam justiça social e igualdade. Portavam faixas e cartazes cujas mensagens falavam da revolta contra a corrupção e contra a implantação de mais presídios no município, que externalizavam a insatisfação popular com a precariedade do transporte público na cidade, que cobravam a valorização dos profissionais da educação, que pedia menos violência, que cobrava obras públicas etc.
Logo na concentração, os manifestantes foram surpreendidos com a informação de que o alto comando da PM não permitiria a passeata acompanhada do carro de som, mesmo após a última ala do desfile, conforme fora acordado a princípio. Depois de muita negociação com a PM, foi decidido que os manifestantes só poderiam sair depois que fosse feito o anúncio oficial do fim do desfile. Ficou claro para este blogueiro diferenciado que a intenção era evitar constrangimentos às autoridades que ocupavam o palanque oficial do 7 de setembro, distante dalí há cerca de 300 metros.
Acatada a ordem, os manifestantes aguardavam sua vez de “desfilar”, enquanto aumentava o contingente de policiais nas imediações, como se crianças, adolescentes, idosos e gente humilde do povo pudesse oferecer algum perigo à população e à Polícia Militar.
Depois de mais uma rodada de discussões e negociações, ficou decidido que seguiríamos nossa jornada. Súbito, somos abalados com a notícia de quem um dos manifestantes fora preso por portar um cartaz com palavras de ordem próximo ao palanque das autoridades.
Recobrado o ânimo após o abalo da notícia supramencionada, o já pequeno grupo segue sua caminhada até a praça central de Ribeirão das Neves. Pelo caminho ficou o carro de som. Munidos de um megafone, os manifestantes seguiam entoando palavras de ordem e revolta com a situação atual de Ribeirão das Neves – um cenário dantesco que vai de escândalos envolvendo o executivo municipal, até a construção de mais um complexo prisional na cidade, promovida a contragosto da população nevense pelo governo do Estado.
Como disse certa vez o poeta itabirano, eis que no meio do caminho tinha uma pedra: o equipamento de som utilizado no desfile de 7 de setembro permanecia ligado no último volume, apesar de as autoridades já terem se retirado. Mais negociação. Dessa vez os manifestantes do Grito exigiam que o equipamento fosse desligado, pois na guerra entre Davi e Golias, o megafone era uma de nossas únicas armas.
Desligado o som, se tornaram mais audíveis os clamores dos passantes. Os poucos populares que ainda ocupavam a região central de Ribeirão das Neves nada entendiam. Muitos não sabiam que grupo era aquele e o que reivindicava. Sob olhares admirados, os indignados manifestantes do Grito seguiram sua jornada, contornando a praça central e ocupando-a.
Essa concentração final contou com o discurso de várias lideranças comunitárias, sindicais e pastorais. As frases das faixas e cartazes foram lidas e depositadas sobre o chão da praça. Nesse momento lembrei-me do poeta Castro Alves: “a praça é do povo como o céu é do condor...”.
Esse último ato foi coroado pelo canto do hino nacional, pela mais ecumênica das orações – o pai nosso –, e pelo grito propriamente dito. Os excluídos, a plenos pulmões, externalizaram toda a sua dor e revolta com a calamitosa situação de Ribeirão das Neves.
Aos poucos que restaram, um convite foi feito para que se dirigissem à delegacia onde estava o companheiro que fora brutalmente abordado e detido ao portar uma faixa cujos dizeres eram os seguintes: “Grito dos Excluídos e das Excluídas – Pela Vida, por direitos ! Por isso Gritamos! Fora Cadeias, Chega de Corrupção! Xô Transimão! Rede Amamos Neves”.
Este blogueiro que vos escreve partiu junto com os bravos manifestantes até a 10º seccional de Ribeirão das Neves. Lá ficamos concentrados até que, depois de muita tensão, nosso camarada de lutas foi liberado.
A grande imprensa fora chamada, mas só chegou depois do último ato, depois que o pano já tinha abaixado, como é característico da mesma.
Uma lição, para mim, ficou patente. Esse país que há 26 anos livrou-se do jugo opressor de uma ditadura militar, e há 189 anos deixou de ser colônia, tem muito pouco a comemorar no dia 7 de setembro. A independência que muitos propalam nesse dia ainda não rimou com democracia.
Como falar em democracia se ainda somos detidos por delitos de opinião? Onde está a democracia quando esta se resume ao voto naqueles que, uma vez eleitos, vão nos massacrar no executivo e no legislativo? Onde a igualdade de todos, se os mais poderosos, detentores do poderio econômico e, por extensão, do político, fazem da res publica uma res privada? Como permanecermos calados e estáticos se uma empresa de ônibus detém o monopólio do transporte coletivo na cidade há mais de 20 anos, prestando um desserviço à população com seus veículos imundos, que “quebram” todos os dias e ficam pelo caminho, apesar do alto preço das passagens? Como não gritarmos por uma Ribeirão das Neves melhor, se somos a cidade que concentra a maior população carcerária do Estado de Minas Gerais e o governo do Estado nos empurra um novo complexo prisional goela a baixo? Como não nos revoltarmos se, apesar de sermos quase 400 mil habitantes, não temos serviços públicos de qualidade, suficientes para todos? Se nos calarmos, as pedras gritarão!
Se hoje perdemos a batalha, o brio não abandonou as nossas faces. Dormiremos hoje o sono dos justos, tranqüilos porque nossos rostos se coram de revolta, não de vergonha. Não temos uma consciência atormentada pela lembrança de atos de corrupção ou injustiça. Essa noite, revolverão os lençóis aqueles que protagonizam o arbítrio, que oprimem o povo sofrido e desarmado com as armas da injustiça e do opróbrio. Amanhã, no entanto, vai ser outro dia! Não descansa, porém, a nossa revolta, e não nos deixam fechar os olhos as injustiças cometidas contra o povo pobre e sofrido de Ribeirão das Neves. Se não nos deixarem sonhar com uma cidade melhor, mais justa para a maioria que ela hospeda, e não apenas para uma meia dúzia de famílias que se julga “dona do pedaço”, não os deixaremos dormir!