Não existe vento favorável a quem
não sabe onde deseja ir.
Sêneca
Com a implementação do Currículo Referência de Minas Gerais no ano de 2022 várias questões e preocupações são apresentadas por parte de estudantes, professores, pais e demais atores presentes no espaço escolar. Muitas dessas apreensões/críticas são voltadas para a parte flexível desse novo currículo, com destaque para o conteúdo intitulado Projeto de Vida que visa estimular os estudantes a adotarem posturas reflexivas, não apenas frente suas escolhas profissionais, mas em todas as dimensões de sua vida. Para contribuir com essas discussões e evidenciar a potência desse novo espaço dentro do currículo, apresento abaixo um relato de inquietações que resultaram em estratégias que venho desenvolvendo ao longo de minha carreira docente que tem como foco o projeto de vida dos estudantes.
Em minha trajetória como professor da rede pública estadual de ensino me deparo constantemente com uma questão que assim como eu todos os professores enfrentam: o que dizer aos estudantes que relatam possuir o sonho de cursar medicina? Provocado por essa questão ao conversar com outras pessoas dentro e fora do espaço escolar, sou recorrentemente aconselhado a orientar esses jovens a desistirem desse sonho. Essa triste recomendação parte da cruel constatação de que a possibilidade de um estudante da escola pública ter acesso a esse curso em uma sociedade desigual e excludente como a brasileira é bem pequena. Principalmente durante e após o período de pandemia causado pela Covid-19 e o consequente agravamento das desigualdades entre os sistemas de ensino público e privado.
No entanto, mesmo compreendendo essa preocupação em não frustrar os jovens por parte de professores, pais e demais pessoas que assumem a importante e difícil tarefa de orientá-los, ainda me parece uma violência muito grande apenas dizer para eles: "Mire mais baixo, tente algo que tem mais a ver com a sua classe social". Ainda mais quando passei a observá-los e constatar na prática que esse "choque de realidade" recorrentemente levava os estudantes a conclusões óbvias como: "Se eu não posso ser o que me sinto vocacionado - por que sou pobre, preto, filho de pais pouco escolarizados e morador de periferia - para que vou investir tempo, dinheiro e demais recursos que me são escassos nos estudos?". Portanto tal postura, mesmo bem-intencionada, consistia apenas em um movimento de naturalizar as desigualdades e consequentemente contribuir para a sua perpetuação.
Dessa maneira permaneci com esse drama durante longos anos da minha carreira de professor até chegar, a partir de estudos e vivências docentes, a conclusão de que, antes de dizer qualquer coisa, eu deveria realizar uma escuta dos protagonistas desse dilema que são os jovens. Afinal a decisão sobre o caminho a ser seguido após a conclusão do ensino médio definitivamente não deveria ser feita por nenhuma outra pessoa a não ser ele mesmo. Só assim eu poderia de alguma forma contribuir, a partir de minha experiência de pessoa pertencente às classes populares e oriunda da escola pública que ingressou na universidade, a ajudá-los a transformar os seus sonhos em um projeto possível de ser realizado, mesmo sabendo que para a efetivação desse seu projeto estes estudantes deveriam construir estratégias muito mais sofisticadas do que as adotadas pelas hiper favorecidas classes médias e elites brasileiras.
A adoção dessa estratégia pedagógica permitiu a compreensão de elementos importantes nas trajetórias e nos processos de escolhas dos estudantes que sinalizavam para caminhos a serem adotados para que de fato as minhas aulas fizessem sentido e ajudassem a cumprir a promessa de transformação que a educação traz para as vidas dos jovens de classes populares. Uma das principais constatações dessa postura de escuta foi que a grande maioria dos estudantes quando questionados sobre o que queriam fazer após a conclusão do ensino médio, declararam possuir o sonho de cursar o ensino superior almejando o ingresso em cursos mais conhecidos, com alto prestígio social e consequentemente mais concorridos como medicina, direito e engenharia. Já os que não desejavam ingressar na faculdade, em muitos casos, optavam por profissões ligadas à segurança pública, especificamente a carreira de policial militar.
Quando questionados sobre o porquê de realizarem tais escolhas, foi perceptível entre os jovens o pouco nível de informação sobre essas carreiras e o completo desconhecimento de quais eram as matérias no currículo da grade escolar associadas às profissões por eles escolhidas. Assim era recorrente o caso de estudantes que declaravam o desejo de cursar engenharia, mas odiavam a área de exatas ou que iriam cursar direito, mas não sabiam que os conhecimentos adquiridos nas aulas de sociologia, história e filosofia eram fundamentais para seu sucesso neste curso de graduação. Uma constatação ainda mais latente dessa escuta foi a de que na verdade esses estudantes não queriam ser médicos, engenheiros, advogados ou policiais, pois possuíam uma visão muito distante do que realmente seria exercer tais ofícios. Assim, em suas falas, demonstravam que na verdade, ao optar por essas profissões, estavam em busca de dignidade e respeito e, em sua visão, dentro de uma sociedade desigual e excludente, onde determinadas profissões são consideradas verdadeiros títulos de nobreza - vide a tradição de médicos e advogados serem chamados de doutores mesmo não possuindo esse grau de escolaridade –, a única forma de ser revestido de dignidade e impor respeito seria vestir um terno, um jaleco ou uma farda.
Logo, grande parte dessas escolhas não partiam de um desejo vocacional, de suas habilidades, características e preferências pessoais - algo fundamental para que tenhamos profissionais que de fato se realizem -, mas sim refletia um desejo de fugir de posturas subalternas e acender a uma posição de elite social, mas sem romper com uma lógica de subjugar os tidos como inferiores em sociedades desiguais e excludentes como a brasileira, ou seja, o caso clássico evidenciado por Paulo Freire ao indicar que "quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é se tornar o opressor".
Tendo em vista tais conclusões, percebi a oportunidade em minhas aulas de sociologia, a partir de reflexões acerca do lugar que o trabalho ocupa na vida dos indivíduos em nossa sociedade, a possibilidade de apresentar parâmetros que poderiam ajudar os estudantes a qualificar melhor suas escolhas bem como compreender os caminhos que o levariam a acessar a carreira desejada. Ainda busquei a partir dessas discussões ampliar o campo de possibilidade desses jovens ao estimulá-los a pesquisar sobre diferentes carreiras, acadêmicas ou não, que poderiam acessar próximo a sua casa, tendo em vista que na Região Metropolitana de Belo Horizonte só a UFMG - que é apenas uma das instituições de ensino que oferta cursos gratuitos - apresenta mais de 70 possibilidades de cursos nas mais diferentes áreas do conhecimento que em sua maioria eram totalmente desconhecidas desses estudantes e que possuem grande afinidade com suas preferências como por exemplo as profissões ligadas a novas tecnologias e artes.
Nesse sentido, tenho buscado revestir os estudantes de capitais sociais ao transmitir informações sobre formas de acesso a cursos em universidades públicas e bolsas em universidades privadas, bem como formas de acesso a cursos técnicos e concursos públicos, que dificilmente teriam acesso via as suas redes de relacionamentos domésticas. Capitais sociais estes que são apontados por vários especialistas como o grande diferencial entre os alunos das classes populares - que geralmente estudam para passar de ano e não enxergam conexão entre o que é ensinado na escola e seus projetos de futuro - e os alunos das classes médias e ricas que desde cedo são ensinados por suas famílias que os capitais (educacionais, informacionais, culturais entre outros ) oferecidos pela escola serão utilizados para obter acesso a universidades de prestígio, boas colocações no mercado de trabalho e convertidos em capitais econômicos. Esses especialistas afirmam ainda que por não saberem as regras do jogo os estudantes das escolas públicas perdem por "W.O", pois devido ao seu total desconhecimento não acionam importantes incentivos implementados por políticas públicas que poderiam garantir o seu acesso à universidades e cursos técnicos inclusive cursos muito caros como o de medicina.
Assim com essas ações focadas em uma proposta de ensino ligada a reflexão acerca do projeto de vida dos estudantes, em um movimento de tentar compreender e orientar as suas escolhas tenho conseguido atingir um a paz de espírito nessa questão sobre o que dizer para os(as) estudantes que apresentam o desejo de ser; médico(a), veterinário(a), empresário(a), jogador(a) de futebol, desenhista, diretor(a) logístico(a), advogado(a), professor(a), mecânico(a), músico(a), MCs, DJ, Youtuber ou qualquer outra carreira que os meus alunos possam almejar , buscando indicar onde os conhecimentos trazidos pela escola poderão lhe ajudar nessa jornada. Assim tenho colhido bons resultados, pois a Escola Nossa Senhora da Conceição, onde sou professor efetivo há dez anos, é a terceira em número de estudantes inscritos no ENEM no município de Ribeirão das Neves (perdendo apenas para o IFMG e a Cidade dos Meninos ), apresentando ainda números expressivos de estudantes que ingressaram em importantes universidades, e tem me resultado em episódios tocantes como o que vivenciei no ano passado em um encontro fortuito com uma ex-aluna em um supermercado que ao me cumprimentar efusivamente disse que havia conseguido uma bolsa integral no curso de medicina e que as discussões que tínhamos promovido em sala de aula foram cruciais para que ela alcançasse essa grande conquista em sua vida.
Depois desse extenso relato, você deve estar se perguntando o que isso tudo tem a ver com o novo currículo e projeto de vida? Em minha visão essa nova disciplina, principalmente para as escolas públicas, deve ser vista como uma possibilidade de ampliar ações como as descritas acima. Esse novo conteúdo curricular, que contará com duas aulas semanais, caso seja bem aproveitado, poderá se configurar em um espaço de escuta dos estudantes do ensino médio que traz em si o potencial de transformar a sua relação com os saberes oferecidos pela escola. Assim, poderá ajudar os estudantes a superar visões protocolares frente aos estudos, deixando de entendê-los apenas como uma tarefa para obter pontos e serem aprovados, os estimulando a compreender esses saberes como fundamentais para a sua trajetória pós-escolar tanto em suas escolhas profissionais como em outras dimensões de sua vida.
Um último aspecto que deve ser salientado consiste no fato de que para as promessas trazidas por esse novo arranjo curricular sejam cumpridas, esforços devem ser realizados pela Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais no sentido de formar efetivamente os profissionais que irão atuar na ministração desse novo conteúdo curricular, sob o risco de limitar essas discussões a meras exposições meritocráticas e com um teor de autoajuda. Ou seja, de fato transformar tais discussões em simples vendas de sonhos em uma postura que lembra a nossa infância com a Xuxa, rainha dos baixinhos, cantando "Tudo pode ser, basta acreditar".
Convido aqui professores, diretores e demais responsáveis pela implementação desse novo componente curricular a enxergá-lo como um signo aberto que devemos dar significado a partir de nossos conhecimentos acerca da comunidade onde atuamos e acessar materiais como os que segue abaixo produzidos pelo Observatório da Juventude da UFMG e Ação Educativa de São Paulo. Dessa forma estamos ajudando os talentosos jovens que frequentam as escolas públicas mineiras a transformar seus sonhos em projetos exequíveis lhe oferecendo capitais sociais (acesso a informações e estratégias) que suas famílias e grupos de convívios sociais não dispõe.
Caro professor(a), diretor e pais caso queira saber mais sobre o que é projeto de vida acesse:
Projeto de Vida – Observatório da Juventude da UFMG - http://observatoriodajuventude.ufmg.br/juviva-conteudo/05-03.html
Cartilha Rumo certo – Ação educativa – https://acaoeducativa.org.br/wp-content/uploads/2016/10/Guia-To%CC%82-no-Rumo.pdf
Roda de Conversa sobre projeto de Vida e Juventude - https://www.youtube.com/watch?v=CJ4jlYaIp3o