Além da preparação para o Enem, projeto oferece ações culturais e atendimento psicológico para jovens periféricos
O "Cursinho Popular de Neves", projeto que tem o objetivo de incentivar os estudantes das periferias de Ribeirão das Neves, município da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), a ingressarem no ensino superior, por meio de uma educação crítica, será inaugurado no dia 25 de agosto.
A proposta vai além das aulas preparatórias para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e também funcionará como um centro cultural, oferecendo oficinas, eventos artísticos, um ateliê de artes, formação política e uma biblioteca popular. A iniciativa também conta com um núcleo de atendimento psicológico gratuito e uma cozinha popular, que irá oferecer alimentação saudável para os estudantes.
De acordo com dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em Minas Gerais, o número de inscritos no Enem caiu 55% entre 2013 e 2023, passando de 803.671 para 361.561.
Para os organizadores do cursinho, a evasão ao vestibular reflete um cenário político e social, marcado pela intensificação do discurso do empreendedorismo e pelo desmonte da educação pública, em que os jovens são desestimulados a ingressar no ensino superior.
Tiago Toth, coordenador do projeto, fala sobre as dificuldades em cursar o ensino superior, sendo um jovem nevense.
‘’Todos os dias eu caminhava mais de 7 quilômetros a pé na volta da faculdade. Eram 2h30 de caminhada, muitas vezes com fome e com sede. Eu estava dando o meu máximo, para não perder minha bolsa de estudos e conseguir me tornar o primeiro da família com diploma de curso superior”, relembra.
Segundo Tiago, o cursinho popular contribui para que os jovens periféricos tenham acesso à educação crítica e popular e não caiam no discurso individualista.
Uma resposta à visão negativa sobre Ribeirão das Neves
Ribeirão das Neves, conhecida por abrigar um dos maiores complexos penitenciários da América Latina e por ser frequentemente associada a aspectos negativos, é uma cidade que tem sua história marcada por desafios.
Considerado o segundo pior município para ser mulher do país, Neves enfrenta estigmas que perpetuam uma imagem distorcida da realidade vivida por seus moradores. Em 2013, o Diário Oficial de Minas Gerais chegou a se referir à cidade como "Ribeirão das Trevas".
Para os organizadores do cursinho, crescer em um lugar com tantos problemas sociais e tão estigmatizado pode ser uma barreira na vida dos jovens periféricos que, frequentemente, enfrentam desafios adicionais para superar essas barreiras. Eles acreditam que a consciência de classe é importante para que essas pessoas não caiam em discursos meritocráticos ou desistam de lutar por melhorias onde vivem.
Fernanda Teixeira Costa, que também atua na iniciativa, afirma que “com a ausência do poder público, o cursinho se torna ainda mais indispensável”. Para ela, estar coletivamente junto de outros nevenses é ver um futuro melhor, mesmo com tantas adversidades.
“Mesmo com todas essas dificuldades, eu aprendi a amar minha cidade, que, ao contrário do que muitos pensam e os noticiários mostram, não é só um reduto de penitenciárias e de notícias ruins. Existem milhares de jovens talentosos, cheios de sonhos, com potencial de realizar grandes feitos, mas que não o fazem por pura falta de acesso”, relata Fernanda.
Hugo Viçoso, coordenador pedagógico do Cursinho Popular Neves, acredita que iniciativas como essa são essenciais para transformar a autoimagem dos estudantes e da comunidade.
“Na medida que se constroem ações tão bonitas e potentes, a comunidade percebe que é agente de transformação e que é capaz de ser aprovada no vestibular ou de transformar a cidade”, afirma.
Nascido de uma ocupação cultural
O coletivo de jovens que organiza o cursinho se uniu por meio do projeto "Ocupa Curumim", uma ocupação espontânea de um espaço público abandonado na região da Gávea, em Justinópolis.
O local, inutilizado por cerca de uma década, ganhou vida com oficinas de circo, capoeira, slackline, cozinha solidária, entre outras atividades. Contudo, em 2023, o espaço passou a sofrer muitos ataques, como o incêndio de uma de suas salas e a depredação da biblioteca comunitária.
Sthefanny Barbosa, militante do cursinho popular, relembra a importância do "Ocupa Curumim" para sua formação pessoal e consciência social.
"Eu tinha 16 anos e estava no segundo ano do ensino médio, quando passei a participar ativamente do projeto. Se tornou um costume ir até lá todos os sábados. Estava presente na biblioteca, no ateliê de moda, em reuniões e outras atividades", conta.
Ela ainda relata como o incêndio impactou sua visão de mundo.
"O dia do incêndio foi apático. Passei por vários momentos de reflexão e ressentimento. Apesar disso, não tinha dimensão do que isso causaria na comunidade. Esse olhar, aprendi no cursinho, e ainda estou aprendendo muitas coisas. Escuto palavras aqui que me fazem questionar muita coisa", comenta.
O Cursinho Popular de Ribeirão das Neves emerge, portanto, como um símbolo de resistência e esperança para a juventude de Ribeirão das Neves, oferecendo não apenas a possibilidade de ingresso no Ensino Superior, mas também um espaço de acolhimento e organização popular, frente aos desafios que a população enfrenta.
Como ajudar?
Acesse a página do cursinho no Instagram e conheça formas de apoiar o projeto.
https://www.instagram.com/cursinhoneves/