Com o intuito de colaborar com a minimização dos impactos da explosão iminente da pandemia do Coronavírus, três pesquisadores da UFMG publicaram, na última sexta-feira (3), uma nota técnica em que apresentam propostas para o enfrentamento da Covid-19 nas periferias urbanas, com ações focalizadas nos assentamentos informais. São sugestões de propostas para serem testadas e implementadas pelas autoridades ao longo das próximas semanas, em articulação com as comunidades e a sociedade civil da qual elas fazem parte.
As medidas foram elaboradas por meio da articulação das recomendações internacionais com a análise dos dados das pesquisas sobre déficit habitacional de 2010 e 2015 para Brasil, regiões metropolitanas e Região Metropolitana de Belo Horizonte, com o conhecimento acumulado de décadas de pesquisa acadêmica e de políticas públicas sobre a realidade habitacional e sanitária das periferias brasileiras, com as experiências de auto-organização desenvolvidas pelas próprias comunidades nas últimas semanas para se protegerem e com uma série de propostas sugeridas pela Central Única das Favelas (Cufa).
É "para ontem"
Na nota, os pesquisadores reiteram que assentamentos informais urbanos são caracterizados, entre outras coisas, por alta densidade populacional, coabitação de famílias no mesmo imóvel e/ou cômodo, abastecimento irregular de água, coleta precária ou inexistente de esgoto e acesso restrito a serviços públicos como saúde, o que torna praticamente impossível que sua população siga à risca as recomendações dos órgãos de saúde para evitar a propagação do vírus, como o distanciamento físico e a lavagem constante das mãos.
"O avanço da Covid-19 no Brasil nas últimas semanas tem tornado evidente a seletividade social das medidas recomendadas de higiene e isolamento ante à realidade das periferias urbanas (favelas, bairros periféricos, ocupações etc.), espaços com maior propensão à disseminação do novo coronavírus", escrevem os autores. Nesse sentido, é "premente que o Poder Público adote medidas estruturais e emergenciais que sejam sensíveis às desigualdades socioespaciais das cidades brasileiras e que contemplem ações focalizadas nos assentamentos informais, complementarmente às medidas socioeconômicas voltadas à proteção dos grupos mais vulneráveis". E conclamam o poder público à ação: "É imperativo que sejam tomadas medidas agora, antes que a transmissão se generalize nas periferias".
A nota é assinada pelo economista João Tonucci Filho, professor da Faculdade de Ciências Econômicas (Face) da UFMG, mestre em arquitetura e urbanismo e doutor em geografia, por Pedro Araújo Patrício, economista e mestrando em economia no Cedeplar, e por Camila Bastos, arquiteta e urbanista e mestranda em arquitetura e urbanismo no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (NPGAU) da UFMG.
Tonucci lembra que a situação é especialmente delicada nas regiões metropolitanas, que convivem com as piores condições para propagação do vírus e com a falta de coordenação entre as ações do poder público. "No caso da Região Metropolitana de Belo Horizonte, particularmente, nos chama atenção o grande número de famílias de baixa renda vivendo em coabitação, sem infraestrutura básica ou espremidas pelo peso do aluguel, além de mais de meio milhão de pessoas morando em favelas e quase vinte mil famílias em ocupações", alerta.
"Essas situações estão concentradas principalmente na capital, em Contagem, em Betim e em Ribeirão das Neves, mas não deixam de fora outros municípios da RMBH. Daí a necessidade de ações urgentes e concertadas entre as prefeituras e o estado, pois numa região metropolitana dinâmica e integrada, o problema de uma cidade rapidamente se torna problema da outra também, exigindo soluções conjuntas com foco nos territórios mais vulneráveis", afirma.
Ações articuladas
Entre as medidas apresentadas, os pesquisadores propõem que as autoridades federais, estaduais e municipais não apenas considerem as diferenças entre as regiões na hora de traçar planos de ação específicos para as periferias urbanas, mas também que o façam "em articulação com lideranças locais, movimentos sociais, especialistas em saúde urbana, saneamento, habitação e agências governamentais de todos os níveis", fortalecendo o trabalho de grupos locais, movimentos sociais e associações comunitárias.
De igual modo, eles aconselham que governos estaduais e prefeituras se articulem para a instituição conjunta de grupos de trabalho para as regiões metropolitanas, de forma que se possa oferecer "auxílios específicos para municípios mais frágeis e/ou com maior população vulnerável, evitando deslocamentos e sobrecarga de demanda nos principais centros" – além de “urgente coordenação entre as ações dos governos estaduais e das prefeituras metropolitanas", observa João Tonucci. Os pesquisadores sugerem, ainda, que os governos estaduais usem seu poder legal para que "concessionárias de água, luz, entre outros serviços essenciais, mantenham o fornecimento mesmo para inadimplentes".
Relativamente à segurança de posse e o direito à moradia, os pesquisadores recomendam a "suspensão por tempo indeterminado do cumprimento de mandados de reintegração de posse, despejos e remoções judiciais ou mesmo extrajudiciais motivadas por reintegração”, assim como a “implementação de medidas que permitam renegociação e/ou suspensão dos contratos de alugueis para famílias vulneráveis de até três salários mínimos por tempo indeterminado".
Higiene, alimentação e serviços básicos
Com foco em medidas mais específicas, os pesquisadores recomendam a "distribuição gratuita e emergencial de água potável e de kits de higienização e limpeza (sabão, álcool em gel, água sanitária) em quantidades suficientes para cada morador/a das comunidades" e a "organização de mutirões (envolvendo poder local, Sistema S, centrais de abastecimento e produtores da agricultura familiar e agroecológica) para distribuição de cestas básicas e alimentos saudáveis ao longo dos próximos meses, especialmente para famílias com crianças, idosos e familiares em grupo de risco vivendo nas periferias".
O grupo também sugere a adoção de linhas de apoio financeiro específicas para as "famílias que dependem da economia popular e informal urbana, particularmente aos ambulantes, aos catadores/as, às trabalhadoras domésticas e demais categorias vulneráveis, além de apoio financeiro específico para as famílias das crianças que estarão impedidas de frequentar creches e para famílias com portadoras de deficiência", em complemento à renda básica emergencial de R$ 600 que, aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente da República, ainda não chegou às mãos das famílias que dela necessita.
Em outras propostas, a nota sugere a criação de comitês comunitários formados por técnicos do governo e da sociedade, visando identificar situações específicas de maior vulnerabilidade, a criação de parcerias com agências locadoras de veículos para locomoção de pessoas infectadas, ampliação das equipes de saúde da família, alocação de clínicas de saúde móveis mais próximas das comunidades afetadas e instalação de hospitais de campanha e pontos de apoio à saúde para sintomas leves, além de medidas com foco no fluxo de informação e comunicação de qualidade certificada nessas comunidades.
"O grande desafio é tomar medidas rapidamente e em escala, garantindo também que as ações sejam contextualmente apropriadas, já que, quando ocorre um surto, a escalada pode ser rápida, deixando pouco espaço para planejamento adicional", alerta o trio de pesquisadores.
A nota técnica está disponível no site da Universidade Federal de Minas Gerais.