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escola civico-militar

  • Seria a escola cívico-militar a solução para os problemas da educação?


    Nós, das Ciências Sociais, temos uma máxima que pode ajudar a responder à questão que dá título a este artigo: “Tentar resolver problemas complexos com soluções simples só aumenta o problema.”

    Exemplos dessas políticas amadoras se acumulam ao longo da história. A Lei Seca nos Estados Unidos é um grande exemplo. Em vez de compreender por que a classe trabalhadora norte-americana se afundava no vício, e buscar enfrentar suas causas — como entender o uso abusivo de álcool como sintoma de um mundo sem perspectiva de melhora de vida para trabalhadores submetidos a jornadas extenuantes, sem acesso a lazer, recreação ou sequer tempo para estar com suas famílias — o governo preferiu a repressão.


    Assim, a resposta do governo norte-americano da época, nada afeito a análises complexas, foi resolver o problema da forma mais simplista possível: proibiu, por decreto, o consumo de álcool. Em vez de apresentar um projeto estruturado e multissetorial que enfrentasse a miséria das classes empobrecidas, optou-se pelo que uma elite com visão colonial sempre faz: sobrecarregar as forças de segurança para reprimir e tentar “domesticar” os excluídos à sua lógica de exploração.
    O resultado dessa “solução mágica” não foi a redução, mas sim o aumento do consumo de bebidas. O mais agravante foi que os donos de bares e os consumidores passaram a ser tratados como transgressores da lei, superlotando as cadeias — obviamente compostas, em sua maioria, por pessoas pobres, pois a elite daquela época, assim como ocorre hoje com a questão da maconha e de outras drogas no Brasil, continuou tomando seu uisquinho sem maiores consequências. Outro grande problema causado pela proibição foi o fechamento das fábricas que produziam bebidas alcoólicas. Com isso, a produção passou a ser clandestina, o que aumentou os casos de intoxicação por bebidas adulteradas, agravando ainda mais o já deficitário sistema de saúde pública norte-americano.

    Nenhuma dessas consequências sensibilizou os donos do poder. Entretanto, a gota d’água para o fim da Lei Seca foi o fato de ela colocar em risco os interesses das elites tradicionais. A venda ilícita de álcool gerou tantos lucros que permitiu o surgimento de figuras como Al Capone. Esse mafioso de origem italiana ganhou tanto dinheiro que, primeiro, comprou o silêncio e a conivência da polícia — que, cansada de “enxugar gelo” ao prender pequenos usuários e traficantes de álcool, passou a ignorar a ilegalidade. Depois, para dar uma aparência de legalidade, Al Capone comprou uma rede de lavanderias para mascarar seus lucros — inventando assim o termo “lavagem de dinheiro”. Além disso, investiu em hotéis e outros negócios, tornando-se uma espécie de rei de Chicago. Por fim, comprou juízes e passou a financiar campanhas políticas, até que as autoridades, temendo perder o controle político da cidade, revogaram a Lei Seca e buscaram outras (ainda precárias) formas de lidar com o alcoolismo.
    Essa lógica de tentar resolver problemas complexos com soluções mágicas também se repete na história das Américas, com o intuito de manter intactos os privilégios das elites e negar sua responsabilidade direta pelo contexto gerador de problemas sociais que se pretende resolver com medidas populistas.

    A chamada “Guerra às Drogas”, iniciada na década de 1960, tinha, assim como a Lei Seca Décadas antes, o propósito era acabar com o uso de drogas entre jovens norte-americanos que, na época, estavam cansados de uma sociedade de consumo e sem sentido, buscando alternativa a um estilo de vida que pretendia escravizá-los, assim como fizeram com seus pais, e se opondo ao desejo do governo de enviá-los para uma guerra sem sentido do outro lado do mundo, no Vietnã. Criaram um movimento de fuga da sociedade que os oprimia, ligado à contracultura, sob os lemas “Paz e Amor”, mergulhando de cabeça nesse novo modo de viver, colocando assim em xeque a lógica do modelo colonial, que exige que as pessoas existam apenas para trabalhar e gerar riqueza — riqueza que, em grande parte, não fica com elas.
    Essa elite — que ainda enxerga o mundo como os colonizadores que chegaram à América em 1492 — preferiu iniciar uma “guerra” que ainda dizima toda a América Latina. Vide a história da Colômbia, muito bem retratada na série Narcos, que provavelmente já matou mais pessoas — em sua esmagadora maioria jovens, indígenas e negros moradores das periferias de origem latina — do que as duas guerras mundiais juntas.

    O mesmo ocorre no Brasil, a partir da segunda metade do século XXI: a tentativa de resolver o problema da violência — causada, em grande parte, pela continuidade de um sistema colonial semelhante ao de castas, que privilegia uma minoria que vive em luxos estratosféricos às custas da exclusão da maioria — culminou na “solução mágica” do encarceramento em massa dos indesejáveis: jovens, negros, pobres, oriundos de famílias expulsas do campo para cidades que nunca ofereceram qualquer chance de inclusão — nem para seus antepassados, nem para eles. O resultado? O exponencial crescimento das facções criminosas dentro dos presídios, que há tempos extrapolaram seus muros e, assim como Al Capone, passaram a dominar setores da economia das grandes cidades.
    Ao ler este texto até aqui, algumas pessoas podem se perguntar — especialmente aquelas com simpatia pelo modelo de escola cívico-militar: o que isso tem a ver com a proposta do governo Romeu Zema para a educação? A resposta é óbvia: faz parte da mesma lógica colonial de sempre.
    Em vez de encarar os complexos problemas enfrentados pela educação brasileira — frutos de um crônico abandono, com salas lotadas, onde o professor mal consegue decorar o nome dos alunos, infraestruturas paupérrimas, pedagogias obsoletas, principalmente para jovens oriundos de classes populares que não veem sentido algum nos currículos, que apenas os tratam como futura mão de obra barata e não comunicam os reais problemas enfrentados — opta-se pela solução mágica, que quase sempre envolve repressão aos já subalternizados.

    A pergunta é: o que esperar da presença de policiais em uma escola de periferia, que, com seu olhar treinado a partir da visão de uma elite colonial, enxergam parte significativa dos alunos atendidos por nossas escolas como suspeitos? E entenda-se “suspeito” como sinônimo de jovem, negro, oriundo de família de baixa renda e com os hábitos de vestimenta típicos das periferias. O resultado é quase óbvio: a expulsão dos tidos como “indesejáveis” do espaço escolar — justamente os mais vulneráveis, e para quem a escola era a única chance de escapar do ciclo de violência e pobreza.
    Essa solução “mágica” tem sido escolhida em detrimento da implementação do Plano Nacional de Educação (2014–2024), uma política de Estado construída de forma colegiada, com metas estruturadas, a serem realizadas em regime de colaboração entre governo federal, estados e municípios. O PNE tem como objetivo garantir uma educação pública, gratuita, de qualidade e voltada para a equidade — com valorização da carreira docente, formação continuada, planos de carreira dignos, gestão escolar verdadeiramente democrática e atenção à aprendizagem real dos estudantes.

    Nada disso foi feito. Para ser justo, a única meta atingida de fato pelo governo Zema, no que diz respeito ao PNE, foi a ampliação da formação técnica de jovens, por meio do programa Trilhas do Futuro. Porém, em vez de fortalecer a educação integrada, como os modelos do CEFET e do IFMG, o governo optou por parcerias público-privadas, cuja qualidade tem sido amplamente questionada — inclusive pelos próprios estudantes.
    Nos sete anos de governo em Minas, pouco se pensou em políticas públicas para educação realmente estruturadas. Pelo contrário: direções escolares, professores e estudantes estão cada vez mais sobrecarregados com avaliações externas sucessivas, que consomem o tempo das já escassas aulas — especialmente de disciplinas como Sociologia, Filosofia, Artes, História e Geografia.

    Eu mesmo, de 10 aulas planejadas neste bimestre para uma turma, consegui ministrar apenas 4, devido às inúmeras avaliações externas. São diagnósticos o ano inteiro — que trazem sempre os mesmos resultados, agravados, além da má qualidade do ensino ofertado, pela baixa adesão e pelo desinteresse dos estudantes por avaliações que não fazem sentido para eles, o que resulta em provas "chutadas". Com razão, eles preferem investir seu tempo em algo mais significativo.
    Seguindo a lógica do diagnóstico, seria como constatar um câncer em estágio inicial e nada fazer. No diagnóstico seguinte, a doença evolui — e o paciente, no caso, o estudante, é submetido a sucessivos exames, sem a adoção de nenhuma medida para enfrentar os problemas diagnosticados. Por fim, o estudante conclui a educação básica e recebe um diploma que apenas atesta seu analfabetismo funcional. Conveniente para o governo que representa essa elite, já que analfabetos funcionais são mais fáceis de manipular — e de acreditar em soluções mágicas, como a escola cívico-militar.
    Cabe aqui desmentir a propaganda amplamente divulgada pelo governador/influencer de Minas Gerais sobre o suposto sucesso dessas escolas. De fato, as escolas com melhor desempenho no estado são públicas, mas não é o Colégio Tiradentes — que, apesar de apresentar resultados um pouco melhores do que a escola pública, o faz não devido à adoção do modelo cívico-militar, mas sim por causa de maiores investimentos e da exclusão compulsória dos estudantes considerados “problemáticos”, que acabam retornando para a escola realmente pública

    As verdadeiras referências são os CEFETs, Coltecs e IFMGs, que superam até escolas particulares de elite em aprovações no ENEM. E isso porque recebem investimento por aluno quatro a seis vezes maior que a rede estadual — são oásis em meio ao subfinanciamento da educação pública.
    Com esses recursos, essas instituições cumprem quase todas as metas do PNE no que diz respeito ao ensino médio. Recentemente, ao levar turmas do 9º ano para conhecer o IFMG de Ribeirão das Neves, presenciei algo raro — principalmente para quem atua nas periferias: professores motivados e orgulhosos de suas instituições.
    Uma breve pesquisa revelou as razões desse fenômeno: bons salários, planos de carreira atrativos, elevada qualificação docente (muitos mestres e doutores), além da implementação de um modelo de educação que enxerga os estudantes de forma integral — com apoio de psicólogos, assistentes sociais, e uma estrutura que integra formação profissional e ensino médio. Uma escola de um único turno com sete horas diárias, com rica infraestrutura de laboratórios — ao contrário do programa Trilhas do Futuro, que não apresenta essa mesma integração nem qualidade.

    Para concluir — e reconhecendo que este texto, por ser extenso, provavelmente não será lido por quem acredita em soluções simplistas para problemas complexos — deixo aqui meu argumento final contra a falácia de que a implementação de escolas cívico-militares seja uma solução mágica para a complexidade do sistema educacional brasileiro e para o histórico de subinvestimento na educação básica.

    Colocar um policial militar reformado para cada 150 alunos, como alternativa à valorização da formação humana, é, no mínimo, desonesto. Mas o que se pode esperar de uma elite com visão colonial?
    O oposto disso seria adotar medidas “abomináveis” para essa elite: promover justiça tributária — em que essa elite passaria a pagar impostos como as classes populares e média, deixando de sequestrar metade do orçamento da União com seus lucros e dividendos sobre uma dívida pública nunca auditada — e construir um Estado de bem-estar social, como já foi feito há mais de um século nos países europeus idolatrados por essa classe que faz cosplay de Odete Roitman.
    A solução oferecida por esse governo, representante dessa elite colonial, é repetir a velha lógica do vigiar e punir — evidentemente, apenas os pobres. Afinal, ninguém propõe escolas cívico-militares para os filhos da elite, que também enfrentam, em suas escolas — vários estudos comprovam isso — violências das mais diversas naturezas — especialmente simbólicas —, indisciplina e uso abusivo de drogas, consequência de um modelo de educação que impõe uma competição predatória, que mina a saúde mental de seus estudantes, em nome de uma meritocracia ridícula.
    Porque, sejamos honestos: qual é o mérito individual de estudar em uma escola que poucos podem pagar?

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